A expressão “Emergência Climática” tornou-se comum nos noticiários de todo o mundo. Foi a palavra do ano de 2019 segundo o dicionário de Oxford, e em resumo descreve um estado do nosso planeta onde as consequências nocivas da alteração climática tornam a vida humana cada vez mais difícil.
Essa popularização gigantesca da expressão não foi em vão, mas sim resultado de um rumo inesperado dos protestos pelo clima e pelo meio ambiente: nos últimos dois anos, a Europa e a América do Norte foram palcos de manifestações com milhões de jovens, que acusaram governos de serem negligentes com as alterações climáticas e demandaram ações imediatas para conter o aquecimento global, além de medidas específicas, que na Europa se materializaram em ataques direcionados à centrais de gás e construção de novos aeroportos.
Ao longo desses dois anos, outra expressão que começou a aparecer cada vez mais, nos cartazes nas ruas e nos discursos midiáticos, foi a chamada “Justiça Climática”. O conceito de justiça, tanto buscado por todos nós, desde os tempos mais primordiais, parece ter vindo para reforçar e solidificar a causa climática, e trazê-la do campo do modismo para que seja algo que fique. Mas na verdade, é difícil definir, a princípio, o que pode significar uma justiça climática. A própria interpretação se torna complicada - justiça climática é a busca pela defesa dos direitos do clima? A ambiguidade da expressão confunde-se com a confusão interpretativa que causa em um primeiro olhar.
A ideia da emergência climática, expressão mais consolidada, é abstrata. Mas não deveria. O mundo observa cada vez mais deslocações humanas entre países por conta de problemas ambientais que impossibilitam a vida em uma região - esses são os refugiados climáticos. Secas extremas, incêndios gigantes, tempestades avassaladoras e pandemias são resultados diretos ou indiretos da desordem ambiental e climática que a humanidade vivencia hoje. Esses problemas não afetarão pessoas daqui a 50, 100 ou 200 anos, afetam hoje. De forma equivocada, a emergência climática é mencionada como algo a se evitar no futuro, quando na verdade, já faz parte do presente.
A realidade distópica criada pela emergência climática atinge países e pessoas mais pobres. Desde comunidades ribeirinhas em ilhas asiáticas até secas extremas do nordeste brasileiro ou incêndios desproporcionais na Austrália, a emergência climática faz de populações mais vulneráveis suas vítimas. A desigualdade social amplifica esses efeitos, na medida em que age invisibilizando o problema dessas pessoas. Embora muito referido, por exemplo, os refugiados climáticos sequer são considerados no direito internacional - ainda que sejam previstos 200 milhões de refugiados climáticos já para 2050.
Felizmente, os agentes de mobilização que encheram as ruas nas chamadas greves pelo clima entendem a conexão direta e clara entre a emergência climática e o sofrimento de segmentos mais vulneráveis da sociedade. A justiça climática, que pode ser entendida como a busca pela garantia de um futuro digno para a humanidade, agora vê sua interpretação alargada para o combate aos efeitos nocivos da degradação ambiental que atinge hoje milhares (ou milhões) de pessoas ao redor do mundo.
O exemplo mais prático dessa mudança é a evolução da própria narrativa do Fridays for Future, hoje visto como rosto do movimento climático. De uma abstração sobre a destruição do futuro dessa e das próximas gerações, o movimento vem agora focando-se em denúncias mais diretas, não sobre um futuro distante, mas sobre um presente escondido. Ainda na COP em Madrid, Greta Thunberg, uma das ativistas do Fridays for Future, usou sua grande plataforma midiática para dar atenção e voz à representantes indígenas, que levaram aos jornalistas uma realidade pouco conhecida. E passando para ação, recentemente destinou cem mil euros para a defesa de povos indígenas na Amazônia no contexto da pandemia, através do Fridays for Future Brasil.
A determinação de Greta em compreender a conexão real entre a crise climática e os grupos sociais mais vulneráveis promove uma virada na narrativa global sobre a Emergência Climática e provoca uma verdadeira deselitização da pauta climática-ambiental. Afinal, do que importaria ao líder indígena que vê seu povo morrer, seja pela bala do garimpo, seja pelo vírus, ouvir sobre uma crise climática que pode, no futuro, exterminar a humanidade? Mas importa ao líder indígena saber que quem atira no seu povo é o mesmo que polui seu rio, que leva o vírus a sua aldeia e que elimina espécies inteiras do planeta - e então aí sim há um real interesse de colaboração, e um real entendimento, sobre as várias faces da emergência climática.
Quando compartilhei em minhas redes sociais que o projeto “SOS Amazonia” (projeto de ajuda a povos indígenas da Amazônia para conter o avanço do novo coronavírus) havia conseguido a captação de 100 mil euros, totalizando então 85% da meta de captação total, fui diversas vezes perguntado: “o que o coronavírus e indígenas tem a ver com o clima?”. A resposta é simples: justiça climática se trata de Justiça Social. Pobres, negros, ribeirinhos, indígenas, são os que hoje já enfrentam o peso dessa chamada emergência climática. Combater as alterações climáticas passa, portanto, pela luta pelos direitos indígenas, pela luta em defesa das comunidades ribeirinhas, e, naturalmente, pela luta anti racista.
No caso dos indígenas, não se trata apenas em defender aqueles que já são afetados pelo problema, mas também de defender aqueles que lutam diretamente contra o problema. Embora poucos, os povos indígenas ao redor do mundo são quem mais mantém intacta a biodiversidade do planeta, a riqueza das florestas e a limpeza dos nossos rios.
O aspecto social da luta contra as alterações climáticas não acabam nessa problemática, nem resumem-se à grupos socialmente marginalizados do sul global. Pelo contrário, é um aspecto presente sobretudo agora na Europa, que vivencia uma onda massiva de protestos anti petróleo e anti gás. Fechadas as centrais, para onde os trabalhadores vão, afinal? A luta contra essas estruturas poluentes não deve se configurar em uma luta contra empregos. Daí vem, portanto, a expressão transição justa quando se refere à transição energética. Não basta fechar centrais, é preciso qualificar trabalhadores e gerar os chamados empregos para o clima. Não faz parte da pauta ambiental celebrar o fechamento de centrais e ignorar desempregos gerados, como faz um certo ministro.
A justiça climática é uma expressão ampla, e que necessita de um volumoso debate, nas ruas e na academia. Mas, de certo, é uma expressão que surge para ficar, e para consolidar o que foi já reconhecida como a causa mais nobre dessa geração. Em um momento em que se teme as consequências econômicas do pós pandemia, o movimento climático não pode ficar alheio à situação social das pessoas, sobretudo dos grupos mais marginalizados. O direito de viver dignamente, com acesso à água, energia, ar limpo é o que busca o ativismo climático. Mas não se viverá dignamente sem a presença de restantes direitos sociais. Embora pouco definida, é absolutamente certo já dizer que não há justiça climática sem justiça social, e fica cada vez mais claro que também não há justiça social sem justiça climática.
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Abel Rodrigues, ativista socioambiental da Greve Pelo Clima Brasil e Greve Climática Estudantil Portugal.
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